Ela corria para o destino dela. Estava extremamente atrasada. Mantinha em mãos apenas o celular dele, que ficara com ela devido à corrida e à confusão da última briga. Segurava o aparelho com força, já que ele tinha dito para não deixá-lo cair de jeito nenhum. O seu coração batia muito forte, de modo que não conseguiria aguentar mais aquela corrida por muito tempo. Parou, então, subitamente, encostando-se à uma árvore, curvando o corpo Estava muito ofegante. O suor corria por sua pele levemente morena, seguindo o contorno do seu rosto lentamente, indo parar na ponta do pequenino nariz, ligeiramente arrebitado. Isso a fez sentir cócegas, levantando a mão para coçar, olhando para o céu sem querer.
O tempo estava fechando. Nuvens negras cobriam os céus como um manto, seguindo uma marcha lenta e irrefreável. Ela ficou mais nervosa, já que uma chuva agora só a atrapalharia, ainda mais forte como parecia que viria. Tinha que correr o mais rápido que podia para o aeroporto, já que o voo não esperaria por ela, e ela tinha que pegá-lo. Bufou de raiva e então tirou os tênis, segurando-os pelos cadarços com seu dedo indicador. esquerdo. Apertou com força contra o corpo a bolsa que segurava e ajeitou a enorme mochila que estava em suas costas, e voltou a correr, procurando evitar buracos ou outras coisas perigosas. Precisava correr antes que descobrissem ela.
Olhava para os lados apreensiva. Tinha muito medo de estar sendo seguida. Odiava com todas as forças que tinha o fato de ser filha de um importante juiz daquela cidade. Era algo tão ruim para ela que tinha que viver cercada por seguranças, para onde quer que fosse. Tinha que ter os amigos fichados por detetives previamente contratado. Tinha que ter a vida monitorada 24 horas por dia. Mesmo ela sabendo que tudo isso era para o seu bem, ela preferia que fosse diferente. Preferia ser pobre. Ter uma vida mais limitada, mas muito mais livre que esse cárcere no qual ela vivia.
Os seguranças não a deixavam fazer nada. Implicavam com tudo. Eram boas pessoas, dedicadas ao trabalho, mas infinitamente exagerados e super protetores. Os tais detetives as vezes exageravam também. Numa dada vez os seguranças implicaram com um garoto estranho, para chegarem a revistá-lo, só para ver que ele carregava uma arma de brinquedo na mochila, parte de um jogo de videogame. Por último, o monitoramento de sua vida impedia que ela conhecesse pessoas novas, já que demorava para os tais detetives levantarem a ficha do sujeito. Mas o pior não era nem isso.
Ela havia se apaixonado por um garoto da escola, que havia conhecido não faziam nem dois meses. Fora algo à primeira vista, avassalador. O pequeno coraçãozinho daquela adolescente não conseguia aguentar tanto amor. Sorte a dela que fora algo recíproco. Ele, o garoto, admitiu já estar de olho nela há um tempo. Quando finalmente conseguiram se encontrar -escondidos, diga-se de passagem – declararam-se um para o outro. A felicidade de finalmente ter um namorado, alguém com quem pudesse dividir suas mágoas e alegrias, mesmo que essas sendo escassas, foi o suficiente para ela mal ligar para a briga que teve com o pai por ter ido escondida para o encontro.
E, infelizmente, justo o que havia dado a ela a felicidade que faltava em sua vida lhe trouxera também a maior das suas tristezas.
Depois daquele dia, a vigilância ficou mais intensa. Os detetives do pai dela resolveram levantar a ficha do tal “namorado”. O pai, além de brigar com ela, começou a implicar com o novo namorado, dizendo que, além de ser perigoso ter uma relação tão íntima com um estranho, ela ainda não tinha idade – tampouco permissão – para começar a namorar. Isso a deixou tão mal que a única coisa que pensou foi em ir encontrar o namorado.
Este fora o segundo passo dado por ela para o desastre em sua vida.
No dia que resolveu sair para vê-lo, de surpresa, foi assaltada na rua. Mais que isso, não só fora assaltada como ameaçada de morte. Levaram-na para um beco escuro, rasgaram sua roupa e quase abusaram dela, deixando-a rendida enquanto que, na base de tapas e gritos, um homem mandava ela avisar para seu “papai” que era para parar de se meter onde não havia sido chamado. Além de perder tudo e ser quase estuprada, saiu machucada, sangrando, com o rosto inchado e completamente arrasada. Como se fosse pouco, ela ainda chegou em casa e levou uma bronca maior ainda, para depois ir para o quarto e ser solenemente ignorada pelo namorado.
Estava no fundo do poço, mas estava para piorar…
Num determinado dia, antes de ir ao colégio, brigara mais uma vez com o pai, que insistia que o problema era aquele garoto, que ele devia ter algo a ver com a ameaça. Como eles sabiam que ela estaria naquela rua, àquela hora, que era ela a filha de um importante juiz que julgava um caso que corria em segredo de justiça? Tinha de ter um informante, e só podia ser “aquele pirralho”. Ela reclamou muito, dizendo , como força de expressão, mas extremamente mal entendido pelo pai, que ele sabia da vida dela mais do que ele. Ao invés de soar como se o pai pouco se importasse com ela, pareceu que a garota disse que o namorado sabia demais sobre ela. Isto fora a gota d’água que faltava para o pai. Os detetives se empenharam como nunca em levantar os antecedentes do garoto.
Naquele mesmo dia, no colégio, ficou o dia todo procurando pelo namorado, que sempre não podia falar com ela ou estava ocupado. Ao fim das aulas ela encurralou-o, desvencilhando-se dos seguranças mais uma vez, fazendo um sacrifício enorme para ver o seu amor…
E justo quando lhe disse isso, ele enfureceu-se, dizendo que ela na verdade pouco fazia por ele.
A coitada desabou. Como assim? Ela fazia demais por ele! Defendia-o, amava-o, brigava com o pai por ele, preocupava-se com o garoto quanto ao colégio… E ele dizia aquilo? Não podia ser verdade… Enquanto as lágrimas corriam pelo rosto perfeitamente delineado e belo, ele bufou uma última vez no meio daquela briga e pôs as mãos nos ombros dela. Levantou o rosto da menina com um dedo e olhou-a nos olhos profundamente, com um ar de seriedade que até fez ela parar de soluçar.
“Precisamos conversar. Este domingo. Fique com meu caderninho e venha até minha casa, se puder. Se não, corra, para o mais longe possível, ok?”
Rapidamente ele se despediu com um longo e demorado beijo na boca, que ela entendeu como sendo possivelmente o último. Correu para as amigas e misturou-se a elas, como se ela tivesse demorado por ter ficado com elas. Isso enganou os seguranças, que nem ouviram ela contando para as amigas tudo o que havia acontecido. Naquele dia, para manter o teatrinho, as garotas foram até sua casa, e lá ela lhes explicou melhor. Pelo visto, ele queria que ela fosse invariavelmente, não importando se haviam seguranças atrapalhando ou não. As amigas foram contra, mas ela estava cega de amor. Só não conseguia entender a parte de correr, porém esperava que ele se explicasse…
Os dias foram passando, normais. Ela estava bem de novo com o namorado. Tudo certo, ele até havia tido vontade de ver o pai dela, conhecê-lo, para dizer que era um bom garoto, apesar do que parecia. Ela adorou a idéia, mas toda vez que comentava como queria o encontro dos dois, ele lembrava-a de que ainda precisavam conversar na semana seguinte, não importava o que poderia acontecer. Ela ficava apreensiva, e ele explicou que queria isso porque, se os dois viessem a terminar, ele queria já ter um encontro marcado com ela, para um acerto de contas, já que sabia que uma ida à casa do pai dela poderia significar o fim. Ela assustou-se com a esperteza dele e beijou-o, agradecendo pelo fato dele ser tão atencioso. Então perguntou a ele porque tinha que correr. E ele apenas respondeu que, se ela não o quisesse mais, era para simplesmente correr dele e esquecê-lo. Ele falou de modo bobo, sem graça e incerto, e ela não engoliu a explicação. Porém ela precisava ir para casa, e os seguranças chamavam. Para evitar mais brigas, eles se despediram, e lá foi ela.
Foi falar com o pai naquele dia, sorridente. Porém foi recebida a gritos de nervosismo e raiva. O pai não só repudiava a idéia, como queria o garoto longe de sua casa. A coitada ficou sem entender, até que o pai lhe esfregou na cara um envelope cinza, além de manter segurando um envelope de carta. No envelope cinza havia um dossiê, feito pelos investigadores, sobre seu namorado. O conteúdo era terrível.
Mal sabia ela que os detetives haviam descoberto que o seu namorado era sobrinho de um homem que estava preso sob ordens do pai dela. Não sendo só isso para atrapalhá-la, ele, ainda por cima, tinha tido uma ótima relação com o sobrinho, tratando-o como um filho que nunca teve. Este homem era um traficante perigoso, que comandava toda a distribuição de drogas daquela cidade, fora outros negócios escusos. Para piorar, fora justamente quando ele foi preso que o garoto mudou-se para a escola onde ela estudava. Tudo se encaixava de uma forma assustadoramente certa…
Para somar-se à torrente de tragédias, o pai deu a ela o envelope de carta, entregue a ele no dia que ela havia sido assaltada e ameaçada. Ele continha uma folha em branco com recortes de letras, que juntas formavam uma frase assustadora.
“Não se meta onde não é chamado, ou pode acabar perdendo sua querida princesinha, toda machucada…
Ou pior.”
Ele ainda tinha numa gaveta um gravador, que continha uma fita com grampos da polícia onde pessoas tinham ligado para ele por três vezes para ameaçar de sequestrá-la. Todos os dias foram os que ela havia se desvencilhado dos seguranças… Para estar com o namorado.
Seu mundo havia caído. Apenas assentiu com a cabeça para o pai, em silêncio, e foi para seu quarto.
As memórias pararam de passar em sua mente quando avistou o aeroporto de longe, após um grande campo coberto por grama e umas poucas árvores. Era para lá que tinha que ir, o último lugar onde poderia se refugiar. De fato, só sabia que havia um aeroporto depois da reserva florestal porque, no caderninho que estava em sua mochila e que havia sido deixado pelo seu ex, havia um mapinha desenhado à mão, indicando a localização e as referências. Ele fazia trilhas por ali, então sempre anotava estas coisas para não se perder. E ela agradeceu aos céus pelo caderno dele ter ficado lá. Isto a fez ficar triste e lembrar-se novamente do ocorrido antes de star naquela situação.
No dia depois de ler o dossiê e ver a carta ameaçadora, começou a evitar o namorado. Tinha agora medo dele. Sentia que não mais o conhecia… Chegou até mesmo a conversar com um outro garoto, que entrou na escola na mesma época que seu “namorado”, e que curiosamente também havia se interessado nela. Este chamou-a para sair mais tarde, algo que ela fez questão de aceitar na frente do namorado, em pleno pátio do colégio, no horário de saída. Após uma crise de ciúmes dele, ela simplesmente levou-o para um canto e, sendo o mais direta possível, falou para ele da forma mais seca que encontrou.
“Eu já sei quem você é.”
Ignorando os gritos de protesto dele, ela deu-lhe costas, enquanto que ele lhe chacoalhava os ombros e pegava em sua mochila, balançando-a. Seus seguranças, ouvindo os gritos, adentraram no pátio, separando os dois. Ela, de forma fria, deu a mão ao menino, tremendo, mas ignorando o choro desesperado do seu amor, que só conseguia gritar, de forma triste e lamentável, “Não se esqueça do meu pedido! Domingo, por favor! Não passe das 10!”.
Depois da saída e de ir ao encontro com o garoto, mal lembrava-se do que tinha acontecido consigo. O incidente do horário da saída e a briga com o ex haviam sido numa sexta, e naquela tarde era fora sequestrada levando uma pancada na cabeça enquanto andava com o garoto novo. Ficou em cativeiro pela sexta a noite e pelo sábado todo, até que viu em sua mochila, num dos raros momentos de lucidez – havia ficado sem comer por todo aquele tempo – , o celular do ex namorado. Ligou para ele desesperada, que não atendeu. Com medo, ela apenas chorou, até que ouviu uma voz parecida com a do ex. Ao ir até a porta, esta se abriu, mas ninguém estava do outro lado. O cativeiro estava vazio. Ela agradeceu infinitamente por ter delirado em ouvir a voz do ex, e então seguiu cativeiro adentro.
Quando passou por uma saleta vazia, apenas com uma tv ligada, ouviu o noticiário. Caiu de joelhos ao ver que a manchete era que o carro de seu pai havia sido metralhado completamente por um carro, e que os criminosos haviam fugido. Mais que isso, a manchete seguinte era sobre seu sequestro, e os principais suspeitos eram seu ex namorado e o garoto que havia saído com ela. Na reportagem, dizia que o ex estava foragido, mas que o outro havia sido preso, tendo confessado ser na verdade parte da quadrilha do tio do seu ex, apenas tendo entrado no colégio dela para sequestrá-la e tirar o pai dela do caso que julgava. Porém, algo na quadrilha dera errado, e além dela ter sido sequestrada, resolveram por executar o pai dela, e em seguida vendê-la para alguma quadrilha de prostituição no exterior. Não aguentando mais ouvir aquilo, correu o máximo que pode para uma reserva florestal perto dali, sem nem olhar para trás, esquecendo até de agradecer pelo descuido dos sequestradores.
Correu até a floresta e então, duas horas depois, parou para descansar. Chorou por uma meia hora, mas logo decidiu se acalmar e dar um jeito de fugir dali. Eram 10 horas da manhã de domingo, e ela mal sabia onde estava. Tinha apenas a mochila, e resolveu ver se ali tinha algo. Enquanto remexia à procura de um sanduíche que sabia que tinha de estar ali, viu um caderninho do ex namorado. Lembrou-se de tê-lo pego na quinta feira, antes de descobrir o que ele era. Gritou de felicidade quanto viu vários mapas das trilhas que ele fazia com amigos por aquela região, sendo um deles levando diretamente de um ponto por onde ela havia passado na fuga até um aeroporto próximo. Apertou o caderninho contra o peito, o que fez um pequeno papel dobrado cair no chão. Olhou-o e surpreendeu-se com o que era.
Uma passagem de avião para uma cidade próxima, tendo grampeada em si 5 notas de cinquenta reais. Olhou o destino e viu que era para a cidade onde alguns parentes seus moravam. Arregalou os olhos e assustou-se. Logo lembrou-se de ter dito ao namorado que lá morava uma avó sua, e que ia sempre para lá nas férias. Com os olhos cheio de olheiras, correu até o aeroporto, disposta a fugir da cidade o quanto antes.
Chegou então ao aeroporto, vendo tudo o que tinha acontecido com ela até agora passar por seus olhos. Segurava a passagem em uma mão e o celular do amado, ainda confusa por ter tudo aquilo preparado para uma fuga dela. Até que então entendeu que era tudo perfeito demais. Parou no meio do aeroporto, olhando para o nada. Usava um casaco com capuz que cobria sua cabeça. Enquanto sentava e pensava, olhou para uma televisão. O jornal falava sobre o caso do carro do pai dela baleado, dizendo que o juiz estava bem, respirando, mas apenas preocupado com a filha.
Com as lágrimas nos olhos, quase não viu três homens entrando no aeroporto, sendo um deles seu ex namorado. Levantou-se confusa e correu para o terminal de embarque. Correu o máximo que pode, enquanto eles percebiam a presença dela e começavam a correr para onde ela estava.
Chegou ao terminal de embarque e guardou o dinheiro preso às passagens, entregando para a mulher o papel e entrando. Correu enquanto pode, e quando entrou no avião, pode ouvir tiros sendo disparados pelos homens em direção a ela. Os seguranças do aeroporto responderam também a tiros, enquanto ela corria pelo corredor da aeronave. Tropeçou nos próprios pés e deixou o celular do amigo cair no chão. Entre a tampa da bateria e o aparelho, viu um pedaço de papel. Sentou-se em sua cadeira, do lado da janela que dava para o terminal. Lá, podia ver o ex, pulando em cima de um dos homens para atrasar sua fuga e tomando um tiro. Então, ele ficou caído no chão e com o braço sangrando. Ela começou a chorar e então o avião levantou voo, enquanto ela batia na janela, gritando, deixando o papel com a letra escrita a mão cair no chão, com os dizeres quase ilegíveis.
“Amor;
Eu descobri o que aconteceu. Cuidado, pois há em nosso colégio alguém que quer sequestrar você. Eu sei porque descobri ao começar a andar com ele. Não te direi quem é, mas farei com que não ande com ele. Ele é perigoso. Ele tem um sobrenome igual ao meu, mas nem meu parente é. Porém o tio dele é perigoso, e está envolvido com seu pai no caso que ele julga. Ele está aqui a mando do tio para sequestrar você e tirar seu pai do caso.
Se você for sequestrada, espero que leia isso e pegue a passagem que deixei junto ao meu caderno. Você já deve ter me confundido com o verdadeiro informante… Mas enquanto estiver bem, eu ficarei feliz. Eu sei exatamente quando o sequestro será feito, por isso, se eu não conseguir te proteger dele, corra o máximo que puder, como eu havia te dito naquele dia… Não importa o que acontecer comigo, eles estão atrás de você, então fuja. Eu já sei quem é o informante, por isso ficarei com ele até o maldito ser preso. Tentarei estar no aeroporto no dia da sua fuga. Se eu não te ver, eu darei meu jeito de ir te salvar no cativeiro. Não pude estar lá, seus seguranças já estavam na minha cola… Mas eu armei toda a sua fuga. Se você estiver lá, eu cobrirei você, de longe. Espero que você fique bem…
Este foi o meu sacrifício para você, pelo seu bem.
Eu te amo.”
Publicado em Contos
Tags: Amor, Angústia, Decepção, Desespero, Fardo, Medo, Raiva, Solidão